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Todas as noites, Rod aparecia no mesmo horário, no começo do escurecer. Aproximava-se mudo e se juntava a nós, na roda. Era o único que não fumava. Aquela era a terceira noite seguida em que o filho da puta vinha com aquela história. Tirava o 32 da blusa — a bala já estava em sua mão —, dava um beijo nela e colocava-a no tambor.
— Esse arrombado quer morrer - disse o Bacurau.
Eu não dizia nada, mas estava aflito até o talo. O olhar do Bacurau, por sua vez, transmitia sabedoria.
Rod colocou a arma no céu da boca. Eu engoli seco. Girou o tambor até parar. Sem hesitar, apertou o gatilho.
A arma não disparou, era uma chance em cinco.
Suspirei aliviado.
— Essa você já passou ontem, Rod – disse Batatinha, com aquele riso de dentes podres. Era um tremendo vigarista. A noite era fria, os homens também. Sapo deu um trago profundo, prendeu o máximo que pôde e soltou, relaxado na cadeira. Me passou o beck olhando para um ponto nulo no teto que se desfazia pelo mau-trato. Rod colocou uma segunda bala no tambor. Me perguntei quem limparia o chão sujo de sangue e miolos se aquela porra desse errado. Traguei, ele apertou o gatilho. Nada. Soltei o ar.
Batatinha gargalhou como um típico tirano.
— Você é um desgraçado! - Gritava. - Vaso ruim não quebra.
Meu desejo era pegar a arma do Rod e descarregar na cabeça daquele traste, até que o tambor encontrasse o eixo certo e fizesse calar aquela risada cínica. Ninguém daria falta dele. Ninguém daria falta de nenhum de nós naquela porra. Homens medíocres. Todos facilmente substituíveis.
— Não abuse da sorte, Rod. Uma hora…
— O que é a sorte, Sapo? - Questionou Bacurau. - Qualquer que for o resultado disso aí, é azar.
Rod não dizia nada. Meteu a mão dentro da blusa e tirou mais uma bala. Eu me ajeitei na cadeira, perturbado. O fumo permanecia em minha mão, quase apagado, mas ninguém se deu conta. Batatinha sugeriu, com seu riso de demônio:
— Deixa eu apertar essa, vai!?
Ele fingia calma. Duvido que teria coragem de puxar o gatilho, era um covarde. No fundo, eu queria entender tudo aquilo.
Rod enfiou a arma na boca e apertou com uma velocidade extrema, e dessa vez fez um estalo que eu cheguei a pensar que o tiro tinha saído. Saltei em meu assento, Sapo tremeu, segurando a cadeira com as duas mãos, as pernas juntas. O Batatinha não piscou e Rod permaneceu com o cano da 32 na boca por alguns segundos, os olhos abertos.
Ficaram todos em silêncio por um instante, até que aquela boca amarela soltou uma gargalhada estridente e fomos tragados de volta pra realidade.
— Você é um imbecil, - disse Batatinha. - Devia fazer isso em praça pública e cobrar da plateia. Ficaria rico e poderia comprar um mesclado decente pra gente, não esta merda aqui que estamos fumando.
Eu soltei um suspiro de alívio e comentei alguma coisa rindo. Fiquei aliviado. No fundo eu gostava do Rod, apesar de quase nunca tê-lo ouvido falar. Gostava de todos, ali. Até do lixo do Batatinha. Éramos todos homens fodidos, com um passado tão triste que jamais fazíamos perguntas um para o outro. Homens sem famílias, sem futuro, sem passado. A vida e a morte pareciam a mesma coisa, então brincar naquele interregno parecia mesmo algo tão trivial quanto Rod fazia parecer. Às vezes eu chegava a conclusão de que se algum de nós tivesse uma faísca de vida dentro de si, provavelmente este cometeria suicídio.
Rod enfiou a mão na blusa de novo e, então, todos se calaram. Tinha uma quarta bala.
Não aguentei, levantei da cadeira.
— Cara, não! Você vai morrer nessa porra.
— Você não precisa provar nada para ninguém - ajudou o Sapo.
Bacurau estava de cabeça baixa. Eu olhava para todos, esperava de algum deles uma manifestação sensata.
Rod demonstrava disposição para ir até o fim. Eu estava chapado e não conseguia raciocinar. Queria estar sóbrio.
O único sóbrio era o próprio Rod, e ele estava prestes a colocar uma quarta bala num tambor com cinco eixos e atirar em sua própria cabeça. Uma ânsia me acometeu de repente, quase vomitei. Olhei para o Sapo e para o Bacurau, mas ninguém dizia nada. Batatinha resmungou:
— Ele é homem, sabe o que faz.
Meu sangue ferveu.
— Cala tua boca, arrombado, senão é teu miolo que eu vou varrer aqui nesse chão hoje.
— Mede tuas palavras, que se ameaçar um homem, vai ter que matar.
Eu cairia pra cima dele, mas Rod abriu o tambor e colocou a quarta bala.
— Tá indo longe demais, Rod.
Que significava tudo aquilo? Éramos homens tristes e tínhamos que provar o que quer que fosse para que a vida valesse a pena. Olhei para aquele cenário: nós cinco numa sala imunda, desabitada de esperança, mas também do medo, alterando a ordem natural do mundo. Pela primeira vez não senti pena de nós. Éramos grandes. Havia algo genuinamente autêntico naquele lixo todo. Todos os outros homens estavam apequenados em suas casas, tomando cerveja, fazendo as contas do mês, com medo de olhar para suas esposas, desejando ardentemente a chegada da noite para que pudessem dormir e esquecer, por poucos momentos, a terrível verdade que eram a miséria de suas vidas. Estavam mortos. Nós também estávamos mortos, mas ao menos sabíamos disso. Essa honra Rod carregava em seu espetáculo fúnebre. Mas qual o limite da honra? E qual o limite da miséria?
Eu vi Rod acariciar aquela bala com intimidade. Ele iria fazer aquilo. Era um homem de respeito e não temia porra nenhuma. Nos entreolhávamos sem nada falar, e nem havia o que ser dito. Quatro balas para um eixo da sorte. Qual a chance? Mais do que isso: o que fazer com seu eventual sucesso? Que vitória isso traria? Todos estávamos tensos. Somente Bacurau não alterava sua expressão. Nunca saquei esse cara.
Rod girou o tambor. Fechou. Eu já o via morto. Enfiou a arma dentro da boca. Vi ele olhar pro céu pela primeira vez. Sua boca meio que sussurrou alguma coisa, parece que rezava.
O silêncio foi surreal. Depois de muito tempo, pude ouvir as batidas do meu coração. Rod tinha apertado o gatilho e a bala não tinha saído. Quando nos demos conta, começamos a gritar e a rir como crianças. Abracei Sapo com muita força. O Batatinha estava de joelhos e batia no chão com as duas mãos, berrando “esse cara é imortal, esse cara é imortal”.
Bati na cabeça do Bacurau que permanecia mudo e estático e disse:
— Deixa de ser rançoso. Você não é capaz de sorrir nunca?
A essa altura o mesclado já tinha apagado. Reacendi e traguei, e ele parecia delicioso. O Batatinha fazia alguma dança estranha, ainda dizendo que o Rod era imortal. O Sapo não parava de rir. Pensei na tristeza que seria uma vida de teatros e cinemas com assentos confortáveis, brindes protocolares e blazers de veludo. Quis escrever um poema. Um poema com final feliz.
Mas algo no olhar do Bacurau me chamou atenção. Ele não estava contente. Olhava seriamente para Rod, e parecia haver um brilho excessivo e úmido em sua íris. Voltei minha atenção para Rod, que permanecia sentado na cadeira. Ele olhava para algum lugar, mas o que ele olhava não estava ali. Olhava para além de qualquer coisa que pudéssemos ver, para além de qualquer compreensão minha. Cheguei a pensar que não olhava com os olhos. Me senti triste ao vê-lo abatido daquela forma. Talvez nenhuma vitória fosse suficiente para ele. Desejei ouvir sua voz, uma palavra que fosse. Mas nada.
Alguma brisa mais gelada entrou pelo vitrô da sala. Foi quando percebi que Rod estava com o tambor da arma novamente aberto. Em sua outra mão havia mais uma bala, a quinta, para o quinto eixo. Todos completos agora. Dessa vez ele não precisaria sequer girar o tambor. Rod olhava para o céu e sussurrava. Eu olhei para o Bacurau e seu olhar era o de quem sabia demais sobre a vida.
JP Moreto é antropólogo, autor de Canecão (Giostri) e O Extermínio das Violetas (Latinoamericana).